domingo, 24 de outubro de 2010

É do lado de dentro que vejo pelo lado de fora



Daqui, preso aqui dentro, só posso imaginar a minha cara vista dali, do canto da sala, ao lado do aparelho de televisão. Cara de quem nem se lembra o que comeu. Cara de quem ainda tem fome e que não tem comida o suficiente. Ah, se dali pudesse olhar, acenar e dizer em voz alta tudo o que penso e sinto! Faria ali, do lado de fora, essa cara também pelo lado de dentro. Meu reflexo não é mais daquilo que fico aqui, imaginando. Sou a voz que registra o que vejo sem ao menos ser autorizada pelo meu próprio eu. Eu, a voz, que vos falo, faço aqui uma nota sobre meu rosto: se vocês pudessem ver como ele estava a pouco! Não é sono, tristeza, monotonia, nada disso.  É uma cara dessas que nos pegamos de vez em quando. É o reflexo que só se vê pelo lado de fora e que existe somente aqui do lado de dentro. Complexo? Não, é reflexo puro. Daqui do lado de dentro vejo tudo como acontece do lado de fora. Mas só vejo. Ainda não sei me desprender e caminhar entre tantos lados meus.

Imagem de Nunes de Freitas. Conheça mais em seu Olhares.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Terça-feira, 19



Tomo meu café como quem acende um cigarro. Na cabeça, movimentando-se com os dedos, os pensamentos mais clichês para o dia seguinte. Antes, chego em casa. Tomo meu banho, pego meu beber e comer. Ensaio deitar, cumpro com responsabilidades para o dia seguinte. Amanha, quarta, quero voltar pra casa, trocar de roupa, caminhar. Na volta, pão quente da padaria. Banho. Mais TV, pra sair da normalidade absurda de todo dia. Nada de jornal, pra não ver absurdidades; pensá-las já deixei há certo tempo. De noite, fizer noite como de hoje, contarei as estrelas. Tentarei. E me sentirei, novamente, sozinho. Saudade do princepizinho, e dos campos de trigo, não porque lembrarão seus cabelinhos loiros, mas porque lembrarei da minha cidade natal, toda cercada de trigo no inverno. O vento e o barulho dos caxinhos secos do trigo, já no final para colheita. Então eu entro. Fecho os olhos, mas as estrelas continuarão lá, sabe porquê? Por que elas não estão no céu. Elas tão no coração que, uma vez aberto, empresta seu espaço para guardá-las. E o meu é dum tamanho que ainda não deu pra contar.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

É você, sim, essa gente



[penso]. Velho que sou, não sei como lhe dizer, caro amigo. Talvez, se ao menos soubesse o que dizer, seria mais fácil. Talvez. Fato é que me levanto todo dia e saio com o dedo em riste: "é você, sim, essa gente", e me coloco, assim, na minha própria condição humana [creio semelhante a sua]. Meus olhos sequer abrem-se e já penso algo como "de novo, preciso ir pra lá". E todos os dias têm sido assim. A angústia, se é que é isso, que deita-se toda noite comigo, existe pelas possibilidades não realizadas. E se não tivesse que ir pra lá? Ou, principalmente, se não tivesse tal consciência sobre essas coisas todas - ainda mais presente - que me confrontam em cada ladrinho 5x5cm que ponho os sapatos, sempre com cadarços bem apertados? Já pensei o que seria melhor, se saber da realidade ou sequer ter como separá-la do meu cotidiano, me deixando assim alguém incapaz de pensar sobre mim mesmo. Acho que o caminho de nossa juventude não se limita em nada, nem em ninguém. Mas é preciso ater-se no que não é palpável e isso implica abdicar de certas coisas que nos confortam. Tal consicência e lucidez não contentam-se com a faca e o queijo na mão. O que elas precisam é da vontade de comer. 

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Jardineiro do universo



O rastelo é a desculpa que o jardineiro usa pra riscar a terra e reorganizar o chão. É com ele - e com suas botas de borracha - que tudo fica novamente em ordem, na ordem que se quer. É, antes de tudo, atitude egoísta: o solo todo arrumado fica como o coração do jardineiro, na medida exata do seu Ser. Como sempre tem um "mas", o nosso se refere à boa fé e trato para com aquilo que queremos ver refletido. A arrumação da natureza serve como metáfora para nossa própria organização, assim como sua harmonia no ambiente refaz nossa paz interior em nosso contexto exterior. Fato é que meu jardineiro do universo ainda não sabe disso tudo. Um dia vai saber; por hora, ele rastela e vê tudo ficando arrumadinho. Mas o faz, especialmente, pois quem o faz junto leva-o de mãos dadas para um canto da saudade, cantinho jamais ocupado pelo esquecimento. Se hoje são os jovens que adormecem, amanhã - você verá - as crianças sobrarão em amor por todos os cantos de cima da nossa terra.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Vida a dois



Vida a dois não deveria ser como comer chocolate: tudo de uma vez. Vida a dois deveria ser como fazer café: lentamente se esquenta a água. Depois, sem ferver, acrescenta o pó e já o coa, em papel para não impregnar com o gosto do coador mal lavado. Se enche a garrafa, a fecha. E o toma pouco a pouco, por todos os anos de vida (o que não significa não ter conhecido todos os sabores de café). Viver a dois não deveria se como um filme da Disney: injusto no começo, triste no meio e feliz no final. Viver a dois deveria ser como uma tela de Manet, que o tempo demorado a ser pintado, ali aprisionado, fosse impressionista, fosse eterno, mesmo que de um curto momento de luz, mas para sempre. O que quero dizer - ahh... sei que não consigo, mas tento de novo - é que viver a dois seja algo como esquecer dos beijos e abraços, dos carinhos matinais e tão necessários ao fortalecimento do amor. Viver a dois é levar o outro aonde a gente iria, e a não deixar seus pés sobre terrenos que jamais pisaríamos. Para isso, é preciso falar ao outro como se quer falar a si. É preciso ternura. Ainda não aprendi a andar com ventos de palavras que me fazem perder a direção. Tudo o resto, é intrinseco. E o resto, beijos e abraços, os carinhos matinais e tão necessários ao fortalecimento do amor vêm juntos.

domingo, 3 de outubro de 2010

Sobre o tempo



Precisei desligar o som. Queria silêncio. Preciso de algumas coisas por hora: silêncio é uma delas. A outra é tempo. Não o tempo que nos falta, mas o que nos sobra. Precisar de tempo e de silêncio é como viajar em uma leitura que, quando se acaba, já se tem saudade. Tenho vários projetos que sinto falta não realizar. Um desses é algum em fotografia, que tenho minha maior intimidade entre as coisas que faço para viver. Estar "sem tempo" é ouvir música enquanto se lê, com um copo de refrigerante no pé do sofá e uma taça de sorvete ao lado, no braço. É ter a TV ligada e o PC baixando músicas, filmes, próteses imaginárias da rasa consciência. É fazer tudo ao mesmo tempo. Já "ter tempo" - e é assim como procuro - é desligar tudo, até a luz. Velas pela casa, um livro com cheiro de estante, um incenso de queima lenta. A sorte dum corredor de vento nesse início de primavera, um copo de capuccinno esquentado no fogão, devagarinho, e a saudade como companhia. Arco com as responsabilidades proteladas também no amanhã.